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Coluna Informação #030 -“Meu presidente falou”

Ao contrário do discurso, não há como dissociar a tragédia sanitária da tragédia econômica. Doentes e mortos não consomem. Isso, o presidente não falou

Rudolfo Lago

05/06/2020 6h00

Foto: Agência Brasil

A vendedora ambulante Luana Carvalho montou a sua banca entre duas agências bancárias, em frente a uma loja de colchões. Filas nas agências em busca do auxílio de R$ 600 proposto pelo governo. Aglomeração nas ruas. Sem fazer uso correto de máscaras e outros equipamentos de proteção, Luana preocupa-se com a chegada da fiscalização. Mas não porque os fiscais pretendem orientá-la sobre a necessidade de se proteger. E, sim, porque ela pensa que é o rapa, pronto para levar suas mercadorias. O novo coronavírus não a preocupa. E ela dá a senha da razão para a sua despreocupação: “O meu presidente falou”.

Esse relato assustador foi colhido na quarta-feira (3) pelos repórteres Olavo Davi Neto e Vitor Mendonça, deste Jornal de Brasília, em Samambaia. Em dois dias, de segunda-feira até a quarta, nada menos que 337 pessoas foram contaminadas pelo novo coronavírus na cidade. Ali, já há mais de 700 pessoas doentes com a covid-19. A doença se espalha pelas regiões mais vulneráveis do Distrito Federal. Somadas Samambaia, Ceilândia, Sol Nascente e Cidade Estrutural, são mais de 2 mil casos. Que levam o governador Ibaneis Rocha a considerar seriamente a possibilidade de lockdown, ou seja, o fechamento radical de toda atividade nessas localidades. Mas, apesar disso, Luana não se importa: “O meu presidente falou”.

Numa entrevista ao mesmo JBr, o deputado bolsonarista Coronel Tadeu ensaiou um argumento de defesa para evitar que o custo de todas essas contaminações e mortes pela pandemia recaia sobre as costas do presidente Jair Bolsonaro. No Brasil, já morreram mais de 30 mil pessoas. E há mais de meio milhão de contaminados. Para o Coronel Tadeu, a responsabilidade não poderia recair sobre Bolsonaro porque, pelo entendimento do Supremo Tribunal Federal, foi dada autonomia total aos estados e municípios para lidar com a pandemia. Assim, se deu certo ou errado, na avaliação do deputado, a culpa não será de Bolsonaro.

A fala de Luana colhida em Samambaia desmonta inteiramente tal argumento. Muito mais forte do que qualquer medida determinada por um governador ou um prefeito é o exemplo de um presidente da República eleito pelo voto popular e com forte militância. Bolsonaro convida todos os dias Luana a achar que pode enfrentar o vírus. O novo coronavírus, diz o presidente, é para os fracos. Ele mesmo, que não é fraco, já pode ter sido infectado umas vinte vezes. Ele mesmo, que é forte, não se importa, caso tenha sido infectado umas vinte vezes, de ter sido vetor da doença. Afinal, ela é para os fracos. E, pelo visto, ele não se importa com os fracos. Luana, apoiada pelo presidente, enfrenta a doença de peito aberto. A doença é só para os fracos. E ela e o seu presidente não são fracos.

O Coronel Tadeu afirma que os governadores nada fizeram porque querem vencer as eleições jogando a responsabilidade pela tragédia nas costas do presidente. Bem, no caso de Ibaneis, tal discurso é uma tremenda injustiça. O governador do Distrito Federal evita a todo custo se contrapor ao presidente. E por aqui tenta fazer a sua parte. Foi o primeiro a aplicar o isolamento social. E vinha conseguindo controlar a doença. Ao reabrir o comércio e outras atividades, vê o risco da situação fugir do controle pelo comportamento de pessoas como Luana.

Ibaneis reabriu o comércio para tentar dar oxigênio à economia, como o tempo todo prega o presidente. Se for obrigado a recuar e aplicar o lockdown, fará a economia arrefecer para tentar salvar vidas. Mas se verá obrigado a fazer isso pela falta de consciência de Luana e outros. E ela deixa claro quem a inspira no seu comportamento.

No caso de Luana, o risco corrido é porque “meu presidente falou”. Se o risco implicar mais doença e mortes, será porque “meu presidente falou”. Se isso fizer a flexibilização retroceder, com impactos na economia local, será porque “meu presidente falou”. Se tal situação se repete em São Paulo, Ceará ou Maranhã, é porque lá também há Luanas ouvindo o que “meu presidente falou”. Se a doença explode no país e isso afeta a imagem brasileira no exterior, igualmente comprometendo os negócios, não há como não considerar que seja porque “meu presidente falou”. Ao contrário do discurso, não há como dissociar a tragédia sanitária da tragédia econômica. Doentes e mortos não consomem. Isso, o presidente não falou.

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